segunda-feira, 15 de abril de 2013
ESCOLHAS – DECISÕES
Todos os dias fazemos escolhas, decidimos por algo a fazer ou não.
Podem ser coisas simples como a cor de uma camisa, qual o filme que iremos ver entre as opções apresentadas.
São decisões, escolhas que mesmo que tenhamos errado ao fazê-lo pouca ou nenhuma repercussão acontecerão com nossa vida presente ou futura. A cor da camisa não combina com a maioria das calças que tenho ou o filme que resolvemos assistir foi um aborrecimento. São situações que até podemos recordar mais tarde com risadas ou como exemplo para decisões, escolhas futuras.
Mas a vida nos reserva também em algum momento situações em que as escolhas, as decisões que precisamos tomar quando colocadas em prática vão alterar profundamente nossa vida. De uma maneira ou outra. Então ficas protelando, transferindo para os amanhãs algo que sabemos que um dia teremos que enfrentar quem sabe então quando a protelação tiver colocado em risco a nossa própria vida.
Metáforas a parte, cada um de nós sabe interiormente que já passamos por situações parecidas e muitas vezes esquecemos as lições aprendidas.
Viver Momentos, do passado tirar aprendizados e saber que o futuro quando chegar será novamente o Momento. Simples não? Simples, por isto que é complicado. Nossa mente
parece programada para acreditar que as coisas não podem ser simplesmente simples.
Cada um de nós é um individuo. Único, inigualável, imperfeito, com dons e gens recebidos independente da nossa escolha. Conhecer o que somos, aceitar o que somos e em cima disto aprender que não temos defeitos nem virtudes, Temos características. Saber quais são, não questionar, mas tentar tirar proveito de tudo que nos pode conduzir a viver momentos impermanentes que são. Nada é para sempre. Culturas mostram isto, filosofias, pensamentos, a própria história da humanidade está ai para ser lida, estudada, e erros evitar, com acertos aprender, com nossas próprias idéias viver.
Simples, por isto difícil. A simplicidade é complexa em nossas mentes que insistem em não querer ver que sempre existirão caminhos para nos levar onde queremos ir. Mas que nenhum um vento será a favor se não soubermos pra onde fica isto. Se não soubermos o que realmente queremos.
Ver sob outro ângulo. Saber que tudo é impermanente, que acabado temos que recomeçar, que terminado algo novo vai surgir que a noite é o começo do dia que a morte é surgimento de uma nova situação.
RICARDO BLAUTH
terça-feira, 9 de abril de 2013
AMOR PRÓPRIO, Voltaire
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.
segunda-feira, 1 de abril de 2013
O Gato Preto, Edgar Allan Poe
Não espero nem solicito o crédito do leitor para a
tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco
seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se
recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda a certeza que não
estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu
espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem
comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas
consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me,
destruíram-me. No entanto, não procurarei esclarecê-los. O sentimento que em mim
despertaram foi quase exclusivamente o de terror; a muitos outros parecerão
menos terríveis do que extravagantes. Mais tarde, será possível que se encontre
uma inteligência qualquer que reduza a minha fantasia a uma banalidade. Qualquer
inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha
encontrará tão somente nas circunstâncias que relato com terror uma sequência
bastante normal de causas e efeitos.
Já na minha infância era notado pela docilidade e
humanidade do meu carácter. Tão nobre era a ternura do meu coração, que eu
acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha uma especial
afeição pelos animais e os meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade
deles. Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz
como quando lhes dava de comer e os acariciava. Esta faceta do meu carácter
acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das minhas principais
fontes de prazer. Quanto àqueles que já tiveram uma afeição por um cão fiel e
sagaz, escusado será preocupar-me com explicar-lhes a natureza ou a intensidade
da compensação que daí se pode tirar. No amor desinteressado de um animal, no
sacrifício de si mesmo, alguma coisa há que vai direito ao coração de quem tão
frequentemente pôde comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade do
homem.
Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha
mulher uma disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o meu
gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me proporcionar
alguns exemplares das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes
dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho, e um gato.
Este último era um animal notavelmente forte e
belo, completamente preto e excepcionalmente esperto. Quando falávamos da sua
inteligência, a minha mulher, que não era de todo impermeável à superstição,
fazia frequentes alusões à crença popular que considera todos os gatos pretos
como feiticeiras disfarçadas. Não quero dizer que falasse deste assunto sempre a
sério, e se me refiro agora a isto não é por qualquer motivo especial, mas
apenas porque me veio à ideia.
Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo
predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e seguia-me
por toda a parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que conseguia impedir
que me seguisse na rua.
A nossa amizade durou assim vários anos, durante
os quais o meu temperamento e o meu carácter sofreram uma alteração radical -
envergonho-me de o confessar - para pior, devido ao demónio da intemperança. De
dia para dia me tornava mais taciturno, mais irritável, mais indiferente aos
sentimentos dos outros. Permitia-me usar de uma linguagem brutal com minha
mulher. Com o tempo, cheguei até a usar de violência. Evidentemente que os meus
pobres animaizinhos sentiram a transformação do meu carácter. Não só os
desprezava como os tratava mal. Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa
consideração que me não deixava maltratá-lo. Quanto aos outros, não tinha
escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco e até o cão, quando por acaso ou
por afeição se atravessavam no meu caminho.
Mas a doença tomava conta de mim - pois que doença
se assemelha à do álcool? - e, por fim, até o próprio Plutão, que estava a ficar
velho e, por consequência, um tanto impertinente, até o próprio Plutão começou a
sentir os efeitos do meu carácter perverso.
Certa noite, ao regressar a casa, completamente
embriagado, de volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato evitava
a minha presença. Apanhei-o, e ele, horrorizado com a violência do meu gesto,
feriu-me ligeiramente na mão com os dentes. Uma fúria dos demónios imediatamente
se apossou de mim. Não me reconhecia. Dir-se-ia que a minha alma original se
evolara do meu corpo num instante e uma ruindade mais do que demoníaca, saturada
de genebra, fazia estremecer cada uma das fibras do meu corpo. Tirei do bolso do
colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pelo pescoço e,
deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita! Queima-me a vergonha e todo eu
estremeço ao escrever esta abominável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se
dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento
misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um
sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a
mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do acto.
Entretanto, o gato curou-se lentamente. A órbita
agora vazia apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não
aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de costume, mas, como
seria de esperar, fugia aterrorizado quando eu me aproximava. Porém, restava-me
ainda o suficiente do meu velho coração para me sentir agravado por esta
evidente antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim. Em
breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda final e
irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE fez de seguida a sua aparição. Deste
espírito não cura a filosofia. No entanto, não estou mais certo da existência da
minha alma do que do facto que a perversidade é um dos impulsos primitivos do
coração humano; uma dessas indivisas faculdades primárias, ou sentimentos, que
deu uma direcção ao carácter do homem. Quem se não surpreendeu já uma centena de
vezes cometendo uma acção néscia ou vil, pela única razão de saber que a não
devia cometer? Não temos nós uma inclinação pperpétua, pese ao melhor do nosso
juízo, para violar aquilo que constitui a Lei, só porque sabemos que o é? E digo
que este espírito de perversidade surgiu para minha perda final. Foi este anseio
insondável da alma por se atormentar, por oferecer violência à sua própria
natureza, por fazer o mal só pelo mal, que me forçou a continuar e, finalmente,
a consumar a maldade que infligi ao inofensivo animal. Certa manhã, a
sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e enforquei-o no ramo de uma
árvore; enforquei-o com as lágrimas a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo
remorso no coração; enforquei-o porque sabia que me tinha tido afeição e porque
sabia que não me tinha dado razão para a torpeza; enforquei-o porque sabia que
ao fazê-lo estava cometendo um pecado, um pecado mortal que comprometia a minha
alma imortal a ponto de a colocar, se tal fosse possível, mesmo para além do
alcance da infinita misericórdia do Deus Mais Piedoso e Mais Severo.
Na noite do próprio dia em que este acto cruel foi
perpetrado, fui acordado do sono aos gritos de «Fogo!». As cortinas da minha
cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande dificuldade
que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição
foi completa. Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante
mergulhei no desespero.
Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer
uma sequência de causa a efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me,
porém, a narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero deixar nem um elo
sequer incompleto. Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as ruínas. As
paredes, à excepção de uma, tinham abatido por completo. Esta excepção era
constituída por um tabique interior, não muito espesso, que estava sensivelmente
a meio da casa, e de encontro ao qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O
reboco resistira em grande parte à acção do fogo, facto que atribuo a ter sido
pouco antes restaurado.
Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão
e muitas pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, com minúcia
e grande atenção. A minha curiosidade foi despertada pelas palavras «estranho»,
«singular» e outras expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora
gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura de um gato
gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa. Em
volta do pescoço do animal estava uma corda.
Mal vi a aparição, pois nem podia pensar que
doutra coisa se tratasse, o meu assombro e o meu terror foram imensos. Por fim,
a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o gato fora enforcado num jardim
junto à casa. Após o alarme de incêndio, O dito jardim fora imediatamente
invadido pela multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o
deve ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta. Isto deve ter
sido feito, provavelmente, com a intenção de me acordar. A queda das outras
paredes tinha comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco
recentemente aplicado e cuja cal, combinada com as chamas e o amoníaco do
cadáver, tinha produzido a imagem tal como eu a via.
Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão -
que não totalmente a minha consciência - sobre o facto extraordinário atrás
descrito, não deixou este, no entanto, de causar profunda impressão na minha
imaginação. Durante meses não consegui libertar-me do fantasma do gato, e,
durante este período, voltou-me ao espírito uma espécie de sentimento que
parecia remorso, mas que o não era. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do
animal e a procurar à minha volta, nos sórdidos tugúrios que agora frequentava
com assiduidade, um outro animal da mesma espécie e bastante parecido que
preenchesse o seu lugar.
Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num
antro mais do que infamante, a minha atenção foi despertada por um objecto preto
que repousava no topo de um dos enormes toneis de gin ou de rum que constituíam
o principal mobiliário do compartimento. Havia minutos que olhava para a parte
superior do tonel, e o que agora me causava surpresa era o facto de não me ter
apercebido mais cedo do objecto que estava em cima. Aproximei-me e toquei-lhe
com a mão. Era um gato preto, um gato enorme, tão grande como Plutão e
semelhante a ele em todos os aspectos menos num. Plutão não tinha sequer um
único pêlo branco no corpo, enquanto este gato tinha uma mancha branca, grande
mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito.
Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e
ronronou com força, roçou-se pela minha mão, e parecia contente por o ter
notado. Era este, pois, o animal que eu procurava. Imediatamente propus a compra
ao dono, mas este nada tinha a reclamar pelo animal, nada sabia a seu respeito,
nunca o tinha visto até então.
Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava
para ir para casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti que o
fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar enquanto caminhava.
Quando chegou a casa, adaptou-se logo e logo se tornou muito amigo da minha
mulher
Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma
antipatia por ele. Era exactamente o reverso do que eu esperava, mas, não sei
como nem porquê, a sua evidente ternura por mim desgostava-me e aborrecia-me.
Lentamente, a pouco e pouco, esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento
transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um certo sentimento de
vergonha e a lembrança do meu anterior acto de crueldade impediram-me de o
maltratar fisicamente. Abstive-me, durante semanas, de o maltratar ou exercer
sobre ele qualquer violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, cheguei a
nutrir por ele um horror indizível e a fugir silenciosamente da sua odiosa
presença como do bafo da peste.
O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal
foi descobrir, na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como
Plutão, tinha também sido privado de um dos seus olhos. Esta circunstância,
contudo, mais afeição despertou na minha mulher, que, como já disse, possuía em
alto grau aquele sentimento de humanidade que fora em tempos característica
minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros.
Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele
a sua preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia que seria
difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me sentava, enroscava-se debaixo
da minha cadeira ou saltava-me para os joelhos, cobrindo-me com as suas
repugnantes carícias. Se me levantava para caminhar, metia-se-me entre os pés e
quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e aguçadas no meu
roupão, trepava-me até ao peito. Em tais momentos, embora a minha vontade fosse
matá-lo com uma pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu
crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por um verdadeiro
medo do animal.
Este medo não era exactamente o receio de um mal
físico; no entanto, é me difícil defini-lo de outro modo. Quase me envergonhava
admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de malfeitor, eu me envergonho de admitir
- que o terror e o horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das
fantasias mais perfeitas que é possível conceber. Minha mulher tinha-me chamado
várias vezes a atenção para o aspecto da mancha de pêlo branco de que já falei,
e que era a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu
tinha eliminado. O leitor lembrar-se-á que esta marca, embora grande, era,
originariamente, bastante indefinida, mas, gradualmente, por fases quase
imperceptíveis e que durante muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como
fantasiosas, assumira, finalmente, uma rigorosa nitidez de contornos. Era agora
a imagem de um objecto que me repugna mencionar, e por isso eu o odiava e temia
acima de tudo, e ter-me-ia visto livre do monstro se o ousasse. Era agora a
imagem de uma coisa abominável e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e
terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte. Por essa altura, eu
era, na verdade, um miserável maior do que toda a miséria humana. E um bruto
animal cujo semelhante eu destruíra com desprezo, um bruto animal a comandar-me,
a mim, um homem, feito à imagem do Altíssimo - oh!, desventura insuportável. Ah,
nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso!
Durante o dia o animal não me deixava um só momento. De noite, a cada hora,
quando despertava dos meus sonhos cheios de indefinível angústia, era para
sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu rosto e o seu peso enorme,
incarnação de um pesadelo que eu não tinha forças para afastar, pesando-me
eternamente sobre o coração.
Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos
resquícios do bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos pecaminosos
me eram familiares - os mais sombrios e os mais infames dos pensamentos. A
tristeza do meu temperamento aumentou até se tornar em ódio a tudo e à
humanidade inteira. Entretanto, a minha dedicada mulher era a vítima mais usual
e paciente das súbitas, frequentes e incontroláveis explosões de fúria a que
então me abandonava cegamente.
Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer
doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar.
O gato seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o que me exasperou
até à loucura. Apoderei-me de um machado, e desvanecendo-se na minha fúria o
receio infantil que até então tinha detido a minha mão, desferi um golpe sobre o
animal, que seria fatal se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe foi
sustido diabólicamente pela mão da minha mulher. Enraivecido pela sua
intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio.
Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume.
Consumado este horrível crime, entreguei-me de
seguida, com toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o
podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser
visto pelos vizinhos. Muitos projectos se atropelaram no meu cérebro. Em dado
momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um
a um pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma cova no chão da cave. Depois pensei
deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa caixa como qualquer vulgar
mercadoria e arranjar um carregador para o tirar de casa. Por fim, detive-me
sobre o que considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na cave
como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas.
A cave parecia convir perfeitamente aos meus
intentos. As paredes não tinham sido feitas com os acabamentos do costume e,
recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa grossa que a
humidade ambiente não deixara endurecer. Além do mais, numa das paredes havia
uma saliência causada por uma chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido
entaipada para se assemelhar ao resto da cave. Não duvidei que me seria fácil
retirar os tijolos neste ponto, meter lá dentro o cadáver e tornar a pôr a taipa
como antes, de modo que ninguém pudesse lobrigar qualquer sinal suspeito.
Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de
um pé-de-cabra retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar cuidadosamente
o corpo de encontro à parede interior, mantive-o naquela posição ao mesmo tempo
que, com um certo trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo.
Usando de toda a precaução, procurei argamassa,
areia e fibras com que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, com
o maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com satisfação que tudo
estava certo. A parede não denunciava o menor sinal de ter sido mexida. Com o
maior escrúpulo, apanhei do chão os resíduos. Olhei em volta, triunfante, e
disse para comigo: "Aqui, pelo menos, não foi infrutífero o meu trabalho."
A seguir procurei o animal que tinha sido a causa
de tanta desgraça, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse
encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que o astuto
animal se alarmara com a violência da minha cólera anterior e evitou aparecer-me
na frente, dado o meu estado de espírito. É impossível descrever ou imaginar a
intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do detestável animal me
trouxe. Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos por uma
noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; sim, dormi,
mesmo com o crime a pesar-me na consciência.
Passaram-se o segundo e terceiro dias e o meu
verdugo não aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro,
aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! Nunca mais voltaria a vê-lo!
Suprema felicidade a minha! A culpa da acção
tenebrosa inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios que colheram
respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma busca, mas, naturalmente,
nada se descobriu. Dava como certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o crime, surgiu inesperadamente
em minha casa um grupo de agentes da Polícia que procederam a uma rigorosa
busca. Eu, porém, confiado na impenetrabilidade do esconderijo, não sentia
qualquer embaraço. Os agentes quiseram que os acompanhasse na sua busca. Não
deixaram o mínimo escaninho por investigar. Por fim, pela terceira ou quarta
vez, desceram à cave. Nem um músculo me tremeu. O meu coração batia calmamente
como o coração de quem vive na inocência. Percorri a cave de ponta a ponta. De
braços cruzados no peito, andava descontraído de um lado para o outro. Os
agentes estavam completamente satisfeitos e prontos para partir. O júbilo do meu
coração era demasiado intenso para que o pudesse suster. Ansiava por dizer pelo
menos uma palavra à guisa de triunfo e para tornar duplamente evidente a sua
convicção da minha inocência.
- Senhores - disse por fim, quando iam a subir os
degraus. - Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita
saúde para todos, e um pouco mais de cortesia. A propósito, esta casa está muito
bem construída (e no meu furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade,
mal sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa excelentemente
construída. Estas paredes... vão-se já embora, meus senhores?... Estas paredes
estão solidamente ligadas. - E neste momento, por uma frenética fanfarronice,
bati com força, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se
encontrava o cadáver da minha querida esposa.
Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemónio!
Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz lhes
respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio abafado e entrecortado
como o choro de urna criança, que depois se transformou num prolongado grito
sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de
horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, provindo das gargantas
conjuntas dos condenados na sua agonia e dos demónios no gozo da condenação.
Seria insensato falar dos meus pensamentos.
Senti-me desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror e
pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes. Logo a
seguir, doze braços vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um só golpe. O
cadáver, já bastante decomposto e coberto de pastas de sangue, apareceu erecto
frente aos circunstantes. Sobre a cabeça, com as vermelhas fauces dilatadas e o
olho solitário chispando, estava o odioso gato cuja astúcia me compelira ao
crime e cuja voz delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o
monstro no túmulo!
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