segunda-feira, 25 de março de 2013

A aliança
Luis Fernando Verissimo


Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

— Você não sabe o que me aconteceu!

— O quê?

— Uma coisa incrível.

— O quê?

— Contando ninguém acredita.

— Conta!

— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

— Não.

— Olhe.

E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

— O que aconteceu?

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

— Que coisa - diria a mulher, calmamente.

— Não é difícil de acreditar?

— Não. É perfeitamente possível.

— Pois é. Eu...

— SEU CRETINO!

— Meu bem...

— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

— Mas, meu bem...

— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

— O mais importante é que você não mentiu pra mim.

E foi tratar do jantar.


Texto extraído do livro "
As mentiras que os homens contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 37.


A vida e a obra de
Luis Fernando Verissimo estão em "Biografias".

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Ambição Superada

Certo dia uma rica senhora viu, num antiquário, uma cadeira que era uma beleza. Negra, feita de mogno e cedro, custava uma fortuna. Era, porém, tão bela, que a mulher não titubeou - entrou, pagou, levou para casa.
A cadeira era tão bonita que os outros móveis, antes tão lindos, começaram a parecer insuportáveis à simpática senhora. (Era simpática).
Ela então resolveu vender todos os móveis e comprar outros que pudessem se equiparar à maravilhosa cadeira. E vendeu-os e comprou outros.
Mas, então a casa que antes parecia tão bonita, ficou tão bem mobilada que se estabeleceu uma desarmonia flagrante entre casa e móveis. E a senhora começou a achar a casa horrível.
E vendeu a casa e comprou uma outra maravilhosa.
Mas dentro daquela casa magnífica, mobilada de maneira esplendorosa, a mulher começou, pouco a pouco, a achar seu marido mesquinho. E trocou de marido.
Mas mesmo assim não conseguia ser feliz. Pois naquela casa magnífica, com aqueles móveis admiráveis e aquele marido fabuloso, todo mundo começou a achá-la extremamente vulgar.

Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"

Bem e Corrupção

Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. De facto, a corrupção é nociva, e se não diminuísse o bem, não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica - o que não é aceitável - ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum bem. Isto não admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneciam incorruptíveis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo o bem?
Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem são boas. Assim sendo, todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é uma substância, pois se fosse substância seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível, e então era certamente um grande bem, ou seria substância corruptível, e nesse caso, se não fosse boa, não se poderia corromper.

Santo Agostinho, in 'Confissões'

quarta-feira, 20 de março de 2013

ATIVIDADE PROJETO 1°EMR


1.   Todos os dias, os escritórios, os restaurantes e as residências produzem muito lixo. As empresas de limpeza trabalham diariamente para recolher uma grande quantidade desse lixo e encaminhar principalmente para os “lixões”. A figura ilustra alguns materiais e seres vivos que podem ser encontrados nos lixões de muitas cidades.


A respeito do problema do lixo e a partir da figura, foram feitas algumas afirmações:

I. os lixões podem produzir o chorume, que consiste em um líquido negro e fétido que pode contaminar os lençóis subterrâneos de água. Esse líquido pode conter microrganismos patogênicos e metais pesados tóxicos para o ser humano;
II. a transmissão das doenças indicadas é exclusiva às pessoas que trabalham da coleta do lixo ou que habitem muito próximo desses locais;
III. haverá transmissão das doenças indicadas somente se os animais listados conseguirem inocular os microrganismos causadores na pele humana;
IV. a decomposição da matéria orgânica presente no lixo pode produzir o gás metano, substância inflamável, pondo em risco comunidades que vivem próximo desses locais.

É correto apenas o contido em
a) I.   
b) I e IV.   
c) II e IV.   
d) I, II e III.    
e) II, III e IV.    

TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
            Em casa trava-se uma luta tácita e subterrânea entre nós e a nossa empregada doméstica. Sem nos aventurarmos em demasiadas recomendações, que poderiam comprometer o bom clima familiar, a cada incursão na cozinha, silenciosa mas ostensivamente, arrumamos o invólucro dos frios, protegemos o toquinho de salame, fechamos o saco plástico ao redor do pão, guardamos o guisado desesperadamente abandonado numa panela de alumínio escondida no forno, verificamos as datas do iogurte, descobrimos insuspeitados tesouros de legumes murchos esquecidos e decretamos uma sopa para o menu da noite etc. O meu medíocre racionalismo se confronta inicialmente com a ideia que a pobreza deveria ensinar naturalmente uma gestão cuidadosa dos alimentos, e estranho portanto uma tamanha indiferença pelo desperdício.
            Um dia, descendo a rua da Praia, em Porto Alegre, deparo com uma mendiga, uma criancinha nos braços. Dou-lhe um dinheiro e vejo que a criança está tomando uma mamadeira de Coca-Cola. Resisto ao impulso de aconselhar leite e entrar numa absurda conversa sobre o supérfluo e o necessário, resisto tanto mais que constato, observando, que, ao lado do miserável grupinho familiar, há um embrulho de comestíveis e, ao lado do embrulho, no chão, um pequeno amontoado de restos visivelmente destinados ao lixo - um quarto de sanduíche, um biscoito mordido... - que faria a felicidade de qualquer mendigo parisiense.
            Lembro uma visita com meu filho Maximiliano ao mercado de São Joaquim, em Salvador. No fim da tarde assistimos ao fechamento: sobra no chão, machucado mas ainda apetitoso, um exército de frutas, sobretudo abacaxis e laranjas, suficiente para satisfazer as necessidades vitamínicas de todas as crianças e os adultos carentes da cidade. Sei que a observação é mal-vinda onde a carência é sobretudo de proteínas. Mas ficamos, Max e eu, perplexos frente à estranha contradição entre a necessidade e o desperdício.
(Calligaris, Contardo, HELLO BRASIL! NOTAS DE UM PSICANALISTA EUROPEU VIAJANDO AO BRASIL. São Paulo: Escuta, 1986.)



2.   Assinale a melhor opção, considerando as seguintes afirmações:

I - O texto trata do desperdício de alimentos nos mercados brasileiros.
II - O texto trata da contradição entre a necessidade dos pobres e o desperdício dos ricos.
III - O texto trata do desperdício de alimentos comum na cultura brasileira.

está(ão) correta(s):
a) Apenas a II.   
b) Apenas a III.   
c) I e II.   
d) I e III.   
e) II e III.   
  
3.   Assinale a melhor opção, considerando as seguintes asserções com relação ao texto:

I -  O autor estranha o desperdício de alimentos num país onde muitas pessoas passam fome.
II - Embora o autor reconheça que o desperdício de alimentos existentes no Brasil ocorre na Europa também, menciona que os mendigos parisienses ficariam felizes com os sanduíches e biscoitos desperdiçados.
III - Segundo o autor, as pessoas no Brasil desperdiçam alimentos que não suprem as necessidades de adultos e crianças carentes da zona urbana, sobretudo porque a carência nutricional maior no país é de proteínas.

está(ão) correta(s):
a) Apenas a I.   
b) Apenas a III.   
c) I e II.   
d) I e III.   
e) Todas.   

TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
            O lixo, sua coleta e destinação final, transforma-se a cada dia em São Paulo num problema que tem atormentado tanto as autoridades como a população em geral. A produção de lixo numa sociedade de consumo indisciplinada como a nossa, é cada vez mais farta e constante. Não nos incomodamos quando adquirimos produtos em embalagens descartáveis; mesmo sabendo que essas embalagens possivelmente irão fazer parte de nossa paisagem; não nos constrangemos em usar e desperdiçar papel, plástico e vidro, numa quantidade cada vez maior, mesmo sabendo do prejuízo que causamos à natureza com essa atitude.
            Caso não criemos novas destinações para o lixo urbano e não modifiquemos nossos hábitos de consumo e nossas atitudes frente ao problema do lixo, teremos dentro de bem pouco tempo uma situação verdadeiramente caótica na Grande São Paulo.
            Cada paulistano produz diariamente um quilo de lixo, que na sua totalidade transforma-se em uma montanha de 12 mil toneladas, o que é, convenhamos, um grande obstáculo para qualquer administrador público.
            Essa quantidade monumental de lixo precisa ser recolhida e despejada em algum lugar, longe de nossas vistas e de nossa saúde. E não é com um passe de mágica que vamos fazer desaparecer essas toneladas diárias de entulho sujo e malcheiroso.
            A um custo altíssimo para os cofres públicos e para nossos bolsos de contribuinte, grande parte dessa sujeira é destinada a aterros sanitários, usinas de compostagem e usinas de incineração. Somente uma parcela muito pequena - apenas 10 toneladas diárias são recolhidas como "lixo-limpo", passível de ser reciclado.
            A reciclagem desse lixo limpo, que é constituído de metal, vidro, plástico e papel, se não representa uma solução definitiva para o problema do lixo urbano, é, no entanto, o melhor caminho para uma mudança de comportamento da população.


4.   Segundo o texto a afirmação MAIS correta sobre o lixo em São Paulo é:
a) nossa sociedade de consumo produz farta e constante quantidade de embalagens recicláveis;   
b) além de muito cara, a reciclagem do lixo urbano não é lucrativa para as autoridades;   
c) no lixo das cidades há muita matéria aproveitável que em grande parte é desperdiçada;   
d) as autoridades públicas enfrentam sérios problemas com o recolhimento do "lixo limpo" nas grandes cidades;   
e) a quantidade monumental de dejetos que se encontra no lixo urbano não pode ser incinerada.   
  
5.   De acordo com o texto pode-se afirmar sobre o lixo de São Paulo que:
a) não é totalmente reciclado, pois seu custo é muito alto para o bolso do contribuinte;   
b) é todo incinerado e depois reciclado, apesar do desperdício que isso representa;   
c) apenas uma parcela muito pequena é incinerada;   
d) apenas uma parcela muito pequena é reciclada;   
e) todo o lixo recolhido é incinerado.   

segunda-feira, 18 de março de 2013

MEU GURI

Galera!!! Vídeo da música que estamos desenvolvendo atividades!!! Para aprender e curtir!!!!

sexta-feira, 15 de março de 2013

Língua, Vidas em Português


Galera do 1° EMTAA e 1°EMTIA , este é o filme que comentei em sala. Vale a pena assistir!!!
Mais informações sobre a Língua Portuguesa.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Meu Guri

Chico Buarque

Quando, seu moço, nasceu meu rebento
não era o momento dele rebentar,
já foi nascendo com cara de fome
e eu não tinha nem nome pra lhe dar.
Como fui levando, não sei lhe explicar
fui assim levando, ele a me levar,
e, na sua meninice, ele um dia me disse
que chegava lá. Olha aí, olha aí...
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri. E ele chega.

Chega suado e veloz do batente
e traz sempre um presente pra me encabular.
Tanta corrente de ouro, seu moço,
que haja pescoço pra enfiar!
Me trouxe uma bolsa, já com tudo dentro,
chave, caderneta, terço e patuá,
um lenço e uma penca de documento
pra finalmente eu me identificar, olha aí...
........................................................................
Chega estampado, manchete, retrato
com venda nos olhos, legenda e as iniciais.
Eu não entendo essa gente, seu moço,
fazendo alvoroço demais.
O guri no mato acho que tá rindo,
acho que tá lindo de papo pro ar.
Desde o começo eu não disse, seu moço?
Ele disse que chegava lá! Olha aí, olha aí...
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri...

BUARQUE, Chico. Almanaque,CD 5 10 010-2, PolyGram, 1993.


TEXTO IV

MUDANÇA

            Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.
            Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escachado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
            Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
            - Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
            Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 64ª ed.,Rio de Janeiro, Ed. Record, 1993, p, 9.



1. (Unesp)  Um confronto entre a charge de Henfil e a letra de Chico Buarque (1944 -) revela algumas coincidências. Observe atentamente o menino, na charge, e as características do personagem "Meu Guri", no poema-canção e, a seguir, indique:


a) Uma característica comum a esses personagens.
b) Os diferentes e lamentáveis desenlaces de suas histórias pessoais.
  
2. (Unesp) 
Comparando-se a charge, "Meu Guri" e o fragmento de "Vidas Secas", percebe-se que, entre outras afinidades, há uma fundamental: a identidade daquelas crianças. Em vista deste comentário, responda:

a) Que afinidades se verificam com relação à nomeação das crianças?
b) Cite e interprete o verso de Chico Buarque que, explicitamente, relaciona a questão da miséria com a da nomeação.
  
3. (Unesp)  A charge de Henfil (Henrique de Souza Filho, 1944/1988), publicada em 1977, aborda a questão da incivilizada distribuição de renda no Brasil, como causa principal da pobreza absoluta, a empurrar crianças ao desamparo das ruas, à falta de horizontes, à delinquência. Com admirável talento e criatividade, o autor impregna de ironia o discurso de um dos personagens, por meio de um jogo entre as expressões "autor material" e "autor intelectual". Observe atentamente o quadrinho que lhe apresentamos e responda:


a) De acordo com a charge, interprete o significado possível da expressão "autor intelectual".
b) Cite um elemento do plano visual da charge que caracteriza a hierarquia ou relação de poder entre os personagens em cena.

  

terça-feira, 12 de março de 2013

segunda-feira, 11 de março de 2013

O preconceito nosso de cada dia


Temos apenas opiniões bem definidas sobre as coisas. Preconceito é o outro quem tem...

Mas, por falar nisso, já observou o leitor como temos o fácil hábito de generalizar (e prova disso é a generalização acima) sobre tudo e todos? Falamos sobre “as mulheres”, a partir de experiências pontuais; conhecemos “os políticos”, após acompanhar a carreira de dois ou três; sabemos tudo sobre os “militares” porque o síndico do nosso prédio é um sargento aposentado; discorremos sobre homossexuais (bando de sem-vergonhas), muçulmanos (gentinha atrasada), sogras (feliz foi Adão, que não tinha sogra nem caminhão), advogados (todos ladrões), professores (pobres coitados), palmeirenses (palmeirense é aquele que não tem classe para ser são-paulino nem coragem para ser corintiano), motoristas de caminhão (grossos), peões de obra (ignorantes), sócios do Paulistano (metidos a besta), dançarinos (veados), enfim, sobre tudo.

Mas discorremos de maneira especial sobre raças e nacionalidades e, por extensão, sobre atributos inerentes a pessoas nascidas em determinados países. Afinal, todos sabemos (sabemos?) que os franceses não tomam banho; os mexicanos são preguiçosos; os suíços, pontuais; os italianos, ruidosos; os judeus, argentários; os árabes, desonestos; os japoneses, trabalhadores, e por aí afora. Sabemos também que cariocas são folgados; baianos, festeiros; nordestinos, miseráveis; mineiros, diplomatas, etc. Sabemos ainda que o negro não tem o mesmo potencial que o branco, a não ser em algumas atividades bem-definidas como o esporte, a música, a dança e algumas outras que exigem mais do corpo e menos da inteligência. Quando nos deparamos com um exceção admitimos que alguém possa ser limpo, apesar de francês; trabalhador, apesar de mexicano; discreto, apesar de italiano; honesto, apesar de árabe; desprendido do dinheiro, apesar de judeu; preguiçoso, apesar de japonês e também por aí afora. Mas admitimos com relutância e em caráter totalmente excepcional.

O mecanismo funciona mais ou menos assim: estabelecemos uma expectativa de comportamento coletivo (nacional, regional, racial), mesmo sem conhecermos, pessoalmente, muitos ou mesmo nenhum membro do grupo sobre o qual pontificamos. Sabemos (sabemos?) que os mexicanos são preguiçosos porque eles aparecem sempre dormindo embaixo dos seus enormes chapelões enquanto os diligentes americanos cuidam do gado e matam bandidos nos faroestes. Para comprovar que os italianos são ruidosos achamos o bastante freqüentar uma cantina no Bixiga. Falamos sobre a inferioridade do negro a partir da observação empírica de sua condição socioeconômica. E achamos que as praias do Rio de Janeiro cheias durante os dias da semana são prova do caráter folgado do cidadão carioca.

Não nos detemos em analisar a questão um pouco mais a fundo. Não nos interessa estudar o papel que a escravidão teve na formação histórica de nossos negros. Pouco atentamos para a realidade social do povo mexicano e de como ele aparece estereotipado no cinema hollywoodiano. Nada disso. O importante é reproduzir, de forma acrítica e boçal, os preconceitos que nos são passados por piadinhas, por tradição familiar, pela religião, pela necessidade de compensar nossa real inferioridade individual por uma pretensa superioridade coletiva que assumimos ao carimbar “o outro” com a marca de qualquer inferioridade. Temos pesos, medidas e até um vocabulário diferente para nos referirmos ao “nosso” e ao do “outro”, numa atitude que, mais do que autocondescendência, não passa de preconceito puro.

Por exemplo, a nossa é religião, a do outro é seita; nós temos fervor religioso, eles são fanáticos; nós acreditamos em Deus (o nosso sempre em maiúscula), eles são fundamentalistas; nós temos hábitos, eles vícios; nós cometemos excessos compreensíveis, eles são um caso perdido; jogamos muito melhor, o adversário tem é sorte; e, finalmente, não temos preconceito, apenas opinião formada sobre as coisas. Ou deveríamos ser como esses intelectuais que para afirmar qualquer coisa acham necessário estudar e observar atentamente? Observar, estudar e agir respeitando as diferenças é o que se esperada de cidadãos que acreditam na democracia e, de fato lutam por um mundo mais justo. De nada adianta praticar nossa indignação moral diante da televisão, protestando contra limpezas raciais e discriminações pelo mundo afora, se não ficarmos atentos ao preconceito nosso de cada dia.


Jaime Pinsky – historiador, doutor e livre docente pela USP – Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo (20/05/1993) e no livro Brasileiro (a) é assim mesmo – Cidadania e Preconceito, 1993, da Editora Contexto (www.editoracontexto.com.br)

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.