segunda-feira, 11 de março de 2013

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

17 comentários:

  1. O costume faz com que coisas que geralmente não são normais em nosso cotidiano comecem ser despercebidas devido à correria do dia-à-dia, isso se deve ao crescimento global, que deixa as pessoas cada vez menos perceptivas. São coisas mínimas mas que se fossem percebidas, com certeza seriam evitadas.

    Victor Oliva 3°RA

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  2. Cada dia que passa nós nos conformamos mais rapidamente com oque acontece, como por exemplo, guerras, mortes, assaltos, roubos, seguindo o fato de que quando estivermos acomodados, nada mais importa.

    Luis Eduardo 3ºRA

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  3. É muito mais fácil continuar em sua zona de conforto, apenas consentindo, de nada reclamando, do que ir atrás de mudanças.
    Os altos impostos, a corrupção, as mortes, já não chocam mais tanto quanto no passado. E não pode ser assim. Ainda devemos no indignar com tais atos, não podemos deixá-los em nossa rotina.
    Se continuarmos aceitando tudo, e não nos impondo à nada, seremos apenas mais um, que vive esperando o dia da morte. Em verdade, nem vive, apenas sobrevive.

    Ritchard Dagnese 3RA

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  4. As pessoas vivem hoje em dia em uma rotina de costume como pressa o tempo inteiro a poluição da cidade, ver as mesmas notícias do dia a dia como corrupção e guerras.E as pessoas aceitam muito os contratempos que não gostaríamos de viver até mesmo nas horas de lazer e todas deviam ''sair'' dessa rotina para ''viver''.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Há muito paramos de seguir o tempo da natureza, para olharmos o relógio e o tempo que o capitalismo nos impõe. Dia a dia a as pessoas vão se tornando menos humanas e mais máquinas, e então as guerras vão parecendo normais, a correria parece normal, a poluição parece normal.
    As máquinas são imunes a isso, os seres humanos não e cada dia morremos um pouco sufocados pela nossa própria criação.

    Letícia F. de Lima-2RB

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  7. Não vivemos para nós nos dias de hoje, vivemos para sustentar uma pirâmide, vivemos para não deixar a estrutura moderna desabar, nos contentamos em apenas dois dias livres por semana onde no primeiro dia descansamos e no segundo nos preocupamos com a rotina que virá no dia seguinte, a liberdade que existia dentro de cada um de nós antigamente não existe mais e se existe se torna inexpressiva ao longo dos anos.
    Perdemos o gosto pela satisfação pessoal, houve uma troca de valores, os valores econômicos hoje se tornaram mais procurados do que os valores sociais.
    Em uma sociedade onde a satisfação de ter um carro novo para ir
    e vir do trabalho, exaustivo, se torna mais importante do que o valor de passar o tempo com a família, podemos afirmar que essa sociedade perdeu a vontade de viver o dia para o prazer próprio.

    Caio Locatelli 3RB

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  8. Uma característica dos seres vivos é a adaptação. Os seres humanos se adaptam com tamanha facilidade, porém, essa adaptação nem sempre é algo positivo. Quando isso vira uma acomodação, vira um problema. Porque nem sempre a gente se acostuma com algo bom, nem sempre o que a gente aceita é o correto, as vezes é preciso parar e questionar o que está acontecendo a nossa volta.

    Isabella Carvalho 3RB

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  9. Tudo o que fazemos , está em nosso cotidiano , e acabamos nos adaptando ao que somos impostos , sem reclamar, não paramos para pensar no que estamos fazendo , pensando , apenas aceitamos o jeito que está , isso é uma forma de fugir do que é o real para não sermos destruídos com a verdade.

    Lucas Di Luccio 3RB

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  10. O conceito de horário introduzido na sociedade, tem levado o ser humano a se tornar cada vez menos humano, nos fazendo pensar que não fazemos parte da natureza.
    Somos bombardeados por propagandas que nos mandam comprar e assim alimentar um sistema que nos torna menos humanos.
    Nos enchem de noticias sobre tragedias para nos deixar mais acostumados a ela e não percebermos a tragedia que é nos afastarmos da natureza e tirara mais facilmente o lado humano.
    Acostumar-se as coisas para não sofrer é quase como uma maquina atualizando-se para se adaptar as novas condições de uso.

    Vitor Sardeiro Pereira 2 RB

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  11. Conforme o tempo passa, os seres humanos vão se adaptando a objetos e locais, somos feitos aceitar condições e regras desde cedo, como obedecer à horários e o que é ou não correto fazer. A maioria das pessoas acabam obedecendo as regras, que fazem parte do nosso cotidiano, nossa rotina.
    Se formos observar este processo, trabalhamos como um computador, que responde e funciona conforme os comandos de seu usuário. Trabalhamos sempre para viver o amanhã, sem aproveitar e pensar no hoje, trabalhamos para sustentar outros e dar do bom e do melhor para nossa família, enquanto ao mesmo tempo apenas alimentamos o sistema de nossa rotina conhecida e fingimos nao perceber mudanças, esquecendo os problemas, deixando de lado o que nos incomoda e o que nos consome.

    Igor Kurachina 2RB

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  12. O ser humano, com o passar do tempo, se acostuma com coisas do seu dia a dia. Nos acostumamos que, tragédia é algo comum porque sempre está na televisão. Nos acostumamos tanto a ponto de acharmos que uma atitude honesta é algo explêndido enquanto deveria ser algo comum, mas isso, devido a realidade imposta pelas mídias.
    O homem se tornou uma maquina, temos horários para tudo, nos adaptamos inconscientemente as coisas que passam na televisão. Nos acostumamos a coisas que deveriam ser estranhas para nós, ao invés disso, deveriamos aprender a viver.

    Leonardo M.P 2RB

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  13. A cada dia que passa estamos nos conformando com coisas que antes eram ruins. Estamos parecendo cada vez mais como as máquinas de uma fábrica, pois fazemos e vemos sempre as mesmas coisas, tendo a mesma rotina fazendo com que acabamos nos acostumando com isso e passando assim cada vez mais normal para nós. E isso é parte da influência do capitalismo sobre nós, pois deixamos de aproveitar o tempo que temos e nos focamos em nossas obrigações como trabalho.

    Thiago Molina 2RB

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  14. Com o passar do tempo, eu, você e as pessoas em geral, vão se acostumando com a rotina do cotidiano, assim moldando seu dia e oque você tem que fazer, que basicamente é, trabalhar, estudar, comer dormir e ver um pouco de televisão que vai te induzir ainda mais as compras.
    Tudo que se passa fora da rotina já se torna uma aventura, como ir ao cinema, parque, teatro etc... assim aliviando um pouco o estresse do dia-a-dia, que cada vez mais vai se tornando um caos.
    Procurar sair da rotina pode ser um meio de relaxar e nao acumular estresse que vão ocasionar problemas no futuro.

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  15. Segundo Darwin, há uma adaptação do ser vivo a um local novo de sua origem. Nos preparamos para os desafios da vida de formas derivadas, apenas com o objetivo de sobreviver mais um dia na sociedade. Procurar caminhos menos estressantes e meios mais relaxantes, para não repetir o dia-a-dia. procurar manter a calma até mesmo nos piores dias, porque a coisas que não nos preparamos, apenas esperamos que não aconteça.
    João Domingo 2RB

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  16. A gente se acostuma, logo se acomoda e nada mais incomoda, eis o grande perigo!

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